A evolução da Caça

Fui contactado pelo Jornal “Público” para uma conversa sobre a Caça, para um artigo a ser publicado no jornal. Anuí, mas alertei o jornalista, várias vezes, durante a entrevista, para o facto de este ser um tema muito sensível e sujeito a más interpretações devido ao profundo desconhecimento e ao preconceito generalizados.

Porém, foi este o artigo que saiu no jornal (ver artigo), e o texto que segue foi o que, na verdade, foi extraído da nossa longa conversa e que combinamos posteriormente, os dois, que assim sairia. É, pois, notório, como se verifica, para quem ler com atenção, como certos jornalistas deturpam e arranjam os factos conforme os seus preconceitos e convicções que infelizmente não conseguem mudar apesar de todas as provas que lhes mostremos.

Então era para ser assim…

A Evolução da Caça

Nas décadas de 70 e de 80 do século passado, o número de “caçadores” em Portugal chegou a cerca de 400 mil indivíduos “,em parte oriundos das grandes cidades, sem alguma ligação ao campo” tipifica ao PÚBLICO João Grosso, caçador, gestor de caça, formador da Componente Técnica do Curso de Gestão Cinegética na Escola Profissional Alsud e também fundador e coordenador da Escola de Caça, Pesca e Natureza (ECPN) em Mértola que recorda o modus operandi destes ditos “caçadores” que chegavam ao Alentejo. “Deslocavam-se em grupos, em carrinhas de 9 lugares, aos domingos e feriados, pelo país fora, varrendo os locais onde imaginavam e descobriam que havia animais. Matavam o maior número de animais de caça sem nenhum tipo de preocupação cinegético-venatória que os levasse a pensar que deveriam forçosamente deixar alguns para criar.” A auto-regeneração da caça por si só não podia suportar tantos caçadores. Esta situação revelou comportamentos que conduziram à devastação e até ao extermínio da fauna silvestre que restava no campo onde imperava o regime de “terreno livre”; terreno livre de qualquer tipo de gestão.

O PÚBLICO testemunhou a 27 de outubro de 1999 um dos momentos mais críticos da atuação desregrada de milhares de “caçadores” que invadiram uma Zona de Caça em Vale de Açor, no concelho de Mértola. “Tudo o que era bicho levou chumbo”, sintetizava na circunstância um morador em Vale de Açor, quando descreveu o cenário do “massacre” que dizimou completamente milhares de espécies cinegéticas existentes em mais de 4.700 hectares que integravam o couto de caça.

A matança era tão desenfreada que, em algumas ocasiões, muitos destes ditos “caçadores” atravessavam quintas particulares, explorações pecuárias, zonas semeadas e pomares, para abater as lebres e as perdizes que ali se refugiavam. A perseguição vitimou ainda porcos pretos, borregos e galinhas. Isto foi feito permissiva e consistentemente durante quase 20 anos. Felizmente, já fazem parte da memória essas imagens com milhares de caçadores, de arma ao ombro, envergando vestuário camuflado – pois muitos tinham passado pelas frentes de guerra coloniais – que chegavam ao Alentejo na expectativa de levar, no regresso a casa, o máximo de espécies de caça.

Foi só já em 1986 que o Estado decretou uma lei (a Lei da Caça, 27 de agosto), que permitia ordenar o território e assim tentar recuperar os escassos recursos faunísticos deixados por essas pessoas de quem a Caça herdou a má fama e proveito, e que, diminuiu drasticamente o efetivo silvestre. Por conseguinte, é este sistema, a Lei da Caça, que agora se defende e implementa, pois, ainda que imperfeito e artificial, permite fazer uma Gestão Racional e Sustentada dos Recursos Naturais. Seguiu-se a este ordenamento, como é natural, uma acentuada crise de vocações. O fascínio que marcava o exercício dessa caça livre e desordenada, durante décadas, deu lugar ao afastamento dos que preferiam não ter a responsabilidade de cuidar para poder caçar.

Porém, devido à falta de Formação dos Caçadores e Gestores, e mesmo dos Agentes da fiscalização, na administração e gestão dos Recursos Cinegéticos, o processo de caça descontrolada e desregrada perpetuou-se, e continuou, dentro das zonas de caça delimitadas pelo ordenamento.

“Basta ver a queda no número de licenças e a noção que se tem de que não entram na caça o mesmo número dos que saem” observa João Grosso, sublinhando que em pouco mais de duas décadas o seu número sofreu uma redução que se situará agora “nos 130 mil indivíduos” vinca o caçador/gestor de caça.

“O que é que mudou para que o entusiasmo pela caça sofresse uma tão acentuada quebra ao longo das últimas duas décadas”, interroga-se o gestor de caça, avançando com uma das justificações mais frequentes: “deixou de haver espécies cinegéticas que assegurassem esta prática venatória sem controle”. Mas, acrescenta: “as explicações para o fenómeno não são tão simplistas”: Em paralelo com estes constrangimentos, João Grosso dá conta da realidade atual que está a condicionar a sobrevivência das espécies cinegéticas e selvagens em geral: “a agropecuária industrial que nos foi e é imposta pela  Politica Agrícola Comum (PAC), e o avanço das monoculturas superintensivas de regadio que comprometem a biodiversidade”.

Áreas anteriormente ocupadas por zonas de caça, muito ricas em recursos faunísticos, sobretudo no sul do país, são neste momento extensos territórios preenchidos por culturas permanentes de olival e amendoal que não se adequam ao habitat de espécies cinegéticas como a lebre e a perdiz. No centro e norte do país, o perigo da completa extinção da fauna que ainda resta, está também associado aos incêndios florestais. “Este tipo de culturas tem repercussões enormes na fauna e na flora. Nestes olivais e amendoais não há praticamente insetos e, sem estes não há biodiversidade sem a qual é impossível criar caça” observa o gestor. Também nos territórios onde impera um encabeçamento exagerado de ovinos e bovinos, as plantas e a microfauna que suportam as espécies silvestres, como a perdiz, estão condicionadas, pelo que também há uma evidente perda de biodiversidade.

“Quando os perdigotos nascem dos ovos do ninho no chão, se não houver insetos, ou apenas formigas, aqueles sobrevivem apenas alguns dias. A diversidade de insetos é fundamental. É a Biodiversidade! A perdiz, tal como a abetarda ou o sisão, são espécies estepárias e nidífugas; todas habitam a estepe alentejana e não são, comprovadamente, aves de floresta; ao eclodirem os ovos no solo, as crias abandonam imediatamente o ninho procurando o alimento rico em proteína que são os insetos! Se não houver insetos, não há abetardas, nem cortiçóis de barriga preta nem perdizes! A Perdiz é o pássaro bandeira de Portugal, sublinha João Grosso, com uma observação:  Assistiu-se a uma invulgar e rápida transformação da paisagem, transfigurando a original estepe de montado esparso, em “pomares” contínuos de arvoredo denso das oliveiras e amendoeiras, onde se equaciona o estado atual da caça em Portugal e que explica, em parte, também, a “fraca adesão de jovens em paralelo com o envelhecimento dos caçadores”.

Não obstante, atualmente a Caça é uma das atividades mais legisladas que existe.  Foi necessária a responsabilização dos Caçadores, levando-os a encarar a Caça como uma atividade importante, imprescindível, e que não podia mais ser praticada apenas como caçadores/ coletores, mas antes como Caçadores/ Conservadores deste património coletivo que é preciso cuidar para o Futuro. Foi preciso adquirir o conceito da Caça como a Gestão Sustentável dos Recursos Naturais, procurando sempre, a conjugação dos Aspetos Ecológicos, Económicos e Sociais. Se não fosse assim, rapidamente acabaríamos com as espécies cinegéticas e, consequentemente, com a fauna bravia em geral. Mudar e encarar a caça de outra forma, até por que, existem agora novas e preocupantes ameaças, como a perseguição de um setor politico, que devia ser responsável, mas que,  por pura ignorância do complexo meio da Natureza, ataca a Caça, querendo acabar com ela, baseando os seus conhecimentos e argumentos, exclusivamente, nas fábulas do Walt Disney do Rei Leão e do Bambi…

Ainda assim, apesar de todas as adversidades, um estudo económico realizado em 2016 pelo Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV) concluiu que os caçadores portugueses gastam 103 milhões de euros em bens e serviços, 85 milhões em armas, munições seguros e taxas, 35 milhões em acessórios, vestuário e calçado, 71 milhões em viagens, dormidas e refeições e 33 milhões nos cães. O negócio da caça em Portugal tem um valor estimado de 330 milhões de euros, acrescenta o INIAV.

Fonte: INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária – Estudo de 2016 – Silva Lusitana)

“O Caçador destruidor de ontem deu lugar ao Caçador conservador de hoje” observa o gestor de caça, vincando que tem vindo a ser institucionalizada a Formação dos Jovens, já desde 2011, na E.P. ALSUD, bem como dos Adultos Usuários do Campo, como é o caso das Formações da Escola de Caça,  pois a “falta de formação dos caçadores e gestores, e mesmo dos agentes da fiscalização, acabou por perpetuar o exercício da atividade cinegética de forma descontrolada e insustentável; é, pois, urgente, apostar na Educação e Formação dos usuários do campo”.

A Atividade Cinegética é, hoje, a ferramenta imprescindível para conseguir uma gestão sustentável do Campo e da Natureza. Os Proprietários rurais, os Gestores e Guardas das Zonas de Caça são os responsáveis pelo fomento e, também, pela gestão da Fauna Silvestre. O que seria dos Predadores de Topo, como o Lince ibérico, a Águia Imperial, a Águia Real ou o Abutre negro, senão fossem os cuidados que as Boas Práticas de Gestão Cinegética aportam, criando as Perdizes vermelhas, Coelhos bravos e Lebres e que ocupam a maior parte da dieta alimentar destes exigentes predadores? O que aconteceria à população de Javalis se, por irresponsabilidade e populismo político, se condicionasse a sua atual caça ordenada e organizada? Se por algum motivo a Caça fosse interrompida, dar-se-ia uma catástrofe sem precedentes no Meio Rural e na Natureza!

A Investigação científica e as Organizações verdadeiramente ambientalistas reconhecem hoje, o papel absolutamente fundamental da Gestão Cinegética no Meio Natural. Por isso há muitos exemplos de parcerias entre a Caça e a Ciência, com as Universidades e a Investigação, como o G.&W.C.T., o CIBIO, o INIAV, a UN de Aveiro, a UTAD, e a Conservação, com o ICNF, a LPN, o GIFS, a FACE, etc. A Caça participa, colabora e acompanha de forma permanente projetos como a Reintrodução do Lince Ibérico, a Conservação do Abutre Negro, da Aguia Imperial, na investigação das doenças do Coelho bravo, da Lebre, da caça maior. A Caça participa, colaborando em Estudos das migrações das aves, em biologia animal, em veterinária, etc…

As espécies cinegéticas são das espécies silvestres mais estudadas pela ciência devido ao interesse acrescido e à colaboração dos caçadores.

As Boas Práticas de Gestão Cinegética são fundamentais, garantindo a biodiversidade que é imprescindível no meio rural e ao maneio sustentável das espécies de caça. Se abdicarmos de cuidar da caça acabamos com as espécies selvagens na Natureza” conclui João Grosso.

P.S. Agradeço ao PÚBLICO e ao Jornalista Carlos Dias, porque, apesar de ter alterado o texto e o contexto desta entrevista, ou artigo, o que se quiser chamar, não mostrando, por exemplo, a ligação estreita e determinante da Caça com a Formação, a Investigação e a Conservação, deu-me, mesmo assim, a oportunidade de mostrar o papel benéfico e insubstituível desta Atividade no Campo e na Natureza, que inacreditavelmente só aparece nos meios de comunicação, quando, por vezes, infelizmente, ocorre um acidente ou então algum crime, mesmo que sem caçadores, mas com caçadeiras…Porque os caçadores usam as suas armas de caça para caçar e nunca para matar alguém…

Junto estas fotografias que mostram Perdizes Vermelhas silvestres autóctones alentejanas “Alectoris rufa”, alguns alunos meus em Formação em Mértola, bem como eu próprio numa Formação nas “Jornadas Hispano Britânicas sobre Gestão de Caça Menor”, em Ciudad Real, Espanha.

Foto de Ernesto Durão; Perdizes autóctones da ZCT da Torre Vã

 

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