Reforço da caça vai travar a invasão dos javalis? “Chamem o Obélix”, pede agricultor

O aumento inusitado das populações de javalis em Portugal será uma consequência directa dos incêndios florestais que, em 2017, dizimaram milhares de hectares de áreas arborizadas no centro do país e em Trás-os-Montes, e do surto pandémico da covid-19, segundo os especialistas. Estes dois fenómenos, um a seguir ao outro, encaminharam milhares de javalis para as zonas urbanas, e até praias do litoral (Arrábida), em busca de alimento que deixaram de ter no seu habitat natural. Mas intensificar a caça, como propõe o Governo, dificilmente irá contribuir para controlar as populações destes animais, que uma estimativa da Universidade de Aveiro admite poder oscilar entre os 150 mil e os 400 mil.

A presença de javalis (Sus scrofa) no interior das povoações revolvendo caixotes do lixo ou nas hortas familiares em busca de alimento revela uma realidade que tarda em ter uma resposta adequada. Nada resiste ao seu apetite voraz. “Dão cabo das vinhas, dos pomares e de outras culturas de horta”, descreve ao PÚBLICO Isménio Oliveira, dirigente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e coordenador da Associação Distrital dos Agricultores de Coimbra (ADACO).

Apesar de ser um animal omnívoro, a dieta alimentar do javali é composta, essencialmente, por bolotas, castanhas, azeitonas e batatas, mas quando a fome aperta, há lugar para ratos, coelhos, ovos, larvas de insectos e até carne em decomposição. Nos arredores do concelho de Penela, os animais não pouparam as explorações de caracóis, e nem as couves que serviam de alimento aos gastrópodes escaparam. Na freguesia de Santo André, no concelho de Santiago do Cacém, uma numerosa vara de javalis aproveitou uma noite de lua cheia para “lavrar” os jardins da povoação à procura de minhocas.

Em Penela “já ninguém semeia milho”

Além das culturas agrícolas já referidas, as searas de milho passaram a merecer as preferências. Em 2018, a Associação de Produtores de Milho e Sorgo (Anpromis) realizou uma consulta a 150 dos seus associados e apurou perto de um milhão de euros de prejuízo, sobretudo na zona da lezíria ribatejana, devido à acção dos javalis. Em 2023, o levantamento efectuado concluiu que a área destruída afectou cerca de 3% da produção nacional e resultou numa perda de “cerca de oito milhões de euros”, revelou ao PÚBLICO Jorge Neves, presidente daquela associação.

O maior impacto social e económico causado pelo javali observa-se nos territórios da pequena exploração agrícola (minifúndio), no centro do país e em Trás-os-Montes, onde se produz milho para consumo próprio ou dos animais domésticos. “As pessoas deixaram de produzir para não suportar os estragos provocados pelos javalis, quando se sabe como o milho é importante para a subsistência das pessoas”, salienta o presidente da Anpromis, destacando um pormenor importante: “são centenas de hectares deixados ao abandono”, uma redução de área que se reflecte na produção nacional.

No concelho de Penela “já ninguém semeia milho”, confirma Isménio Oliveira, situando o maior impacto da acção destruidora dos javalis nos concelhos de Miranda do Corvo, Penela e Condeixa-a-Nova, acrescentando que “a invasão começou mais intensamente em Leiria, Coimbra e Viseu para rapidamente se espalhar ao país todo”.

As doenças e os “cruzamentos” com porcas alentejanas

Contudo, a ameaça maior está no potencial perigo para a saúde pública e os aparcamentos de suínos, através da propagação de doenças zoonóticas como a tuberculose, a triquinose ou, verdadeiramente grave, a peste suína africana (PSA), o pesadelo dos criadores de pecuária extensiva.

Na década de 1960, o vírus desta terrível doença chegou à Península Ibérica, em grande parte devido aos carrapatos ou carraças, o seu vector principal. A completa erradicação do vírus levou mais de 30 anos. “Se viermos a ter, de novo, na Península Ibérica um problema sanitário associado à PSA, é praticamente impossível que não chegue ao porco alentejano”, adianta ao PÚBLICO Nuno Faustino, presidente da Associação de Criadores do Porco Alentejano (ACPA).

E mesmo que existam vedações, “os javalis furam as malhas da rede ou entram no interior dos aparcamentos pelas linhas de água, contactam as espécies domésticas e acabam por transmitir a doença”, sublinha o presidente da ACPA, realçando um pormenor preocupante: O javali “cobre as fêmeas do porco alentejano e deixa crias cruzadas, e até já aprenderam a alimentar-se de pequenos borregos”.

O vírus da PSA já foi detectado na Roménia, Bulgária, Polónia, Hungria, Bélgica, Itália e Alemanha. A possibilidade de isso poder vir a acontecer em Portugal “é muito maior” quando o território nacional continental apresenta uma sobrepopulação de javalis. Se o contágio chegar ao Alentejo, “seremos proibidos de exportar para o mercado espanhol, que recebe 90% da nossa produção”, observa Nuno Faustino, lembrando que a pecuária extensiva de porco alentejano já representa 30% das explorações da região.

A estratégia

O Plano Estratégico e de Acção do Javali em Portugal, elaborado por uma equipa da Unidade de Vida Selvagem do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro (UA) e apresentado, em Évora, a 30 de Maio de 2023, assinala que Portugal espelha o actual cenário europeu: “As populações de javali estão a aumentar, tanto em número como em distribuição.”

E apesar de as evidências sobre o impacto ecológico, positivo ou negativo, do javali em Portugal “ainda serem escassas, o número de relatos sobre danos em cultivos, acidentes rodoviários e transmissão de doenças e de agentes infecciosos resistentes a antibióticos acumulam-se”, concluem os investigadores da UA.

Que fazer então para controlar e monitorizar o aumento das populações de javalis, que “não revelam tendência a diminuir, bem pelo contrário”? “A sua proliferação é maior do que se possa pensar”, analisa Isménio Oliveira, criticando os vários governos, que se foram sucedendo sem encontrarem uma solução para o problema.

Autorizar a caça à noite não chega

O dirigente da CNA considera pouco eficaz a decisão do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) de autorizar a caça ao javali todas as noites do mês, “para mitigar prejuízos causados pelos animais”. Nem mesmo a “alteração cirúrgica” que o Governo se comprometeu a efectuar ao artigo 88.º do Decreto-Lei 202/2004, que regulamenta a caça e que vai permitir que “as organizações e os caçadores possam ter uma intervenção mais activa no controlo” dos javalis, poderá ser a solução para o excesso de animais, reforça Jacinto Amaro, presidente da Federação Portuguesa de Caça (Fencaça), nos esclarecimentos prestados ao PÚBLICO.

A redução do número de caçadores e o fraco recrutamento de novos entusiastas da caça são um facto, para já, incontornável, admitiu este dirigente associativo. Deixar nas mãos dos caçadores e das suas organizações a redução dos efectivos de javalis “dificilmente irá acrescentar muito mais ao cenário que temos”, diz Jacinto Amaro, lembrando ainda que “as pessoas não têm vida para ir caçar todas as noites”. E um javali não tem predadores, a não ser o homem ou o lobo.

O plano estratégico elaborado pela UA dá como exemplo a situação espanhola, onde se estima que a “predação do lobo seja responsável por 12% da mortalidade de javalis, em comparação com 31% causada pela caça”. Os predadores capturam principalmente crias ou juvenis, enquanto os caçadores atingem animais adultos. Logo, as implicações para a dinâmica populacional “são significativas”, referem os investigadores da UA.

Aumento da população em quatro anos

No entanto, em Portugal, a população destes animais apresenta, na generalidade, uma situação de sobrepopulação, especialmente num contexto em que a disponibilidade de recursos alimentares em áreas rurais e áreas periurbanas “continua a desempenhar um importante papel na dinâmica populacional do javali”, acentua o documento elaborado pela UA.

Este aspecto “pode repercutir-se num aumento do número de crias por fêmea fértil, num aumento da percentagem de fêmeas gestantes e num incremento na taxa de sobrevivência dos listados e juvenis, o que se traduz no indesejável aumento da população de javali”, avisam ainda os investigadores. Para alterar este cenário crítico, os investigadores da UA propõem que a curto/médio prazo (5-10 anos) se encetem esforços no sentido de aumentar a taxa de extracção (abate de animais) em 20%-30%, percentagem que o presidente da Fencaça admite não ser suficiente.

Em 2019, recorda Isménio Oliveira, calculou-se que em Portugal existissem “cerca de 100 mil javalis”. Quatro anos depois, a estimativa nacional avançada no Plano Estratégico e de Acção do Javali aponta para um número que pode variar entre 163.157 e 391.612 animais.

Com tantos animais em busca de alimento, e as dificuldades em encontrar uma solução viável para o controlo e monitorização dos javalis, a situação torna-se insuportável. Um agricultor da Vidigueira sente-se impotente para travar o acesso dos “javardos” à sua plantação de hortícolas, e comenta, ironicamente: “É altura de chamar o Obélix.” Ou, então, sugere, num registo mais sério mas igualmente pouco provável, que se aplique o mesmo princípio adoptado pelo Governo luxemburguês: por cada javali morto e entregue num centro de recolha, o caçador recebe 100 euros.

 

Fonte:

Invasão dos javalis em Portugal: “Chamem o Obélix”, pede agricultor | Caça | PÚBLICO (publico.pt)

 

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